Projeto Ave Missões: Pesquisa, Educação Ambiental e Conservação com Aves da Região Noroeste do Rio Grande do Sul

terça-feira, 5 de outubro de 2021

Um estranho no ninho

* por Francis Mousquer
Gavião-tesoura. Foto: A. Rauber.
Lembro-me da minha infância, quando um melodioso canto me encantava nas manhãs de primavera em que visitava a casa de meus avós.

Demorei anos até descobrir tratar-se de um sabiá-laranjeira – ave símbolo de nosso amado país – o qual nada tem a ver com o período sombrio em que vivemos, talvez a ave mais adequada nesse momento fosse o corvo.

Ironias a parte, os pássaros sempre foram animais que me fascinaram, ou melhor, as aves.

Creio que toda criança em algum momento de sua infância imaginou-se plainando em uma térmica, acalentado pelo eterno sonho de voar que carregamos conosco.

Aprofundei-me um pouco mais no mundo da ornitologia-observatória após conhecer a minha amada companheira de vida, a bióloga Adelita Maria, mulher mais que especial, guerreira e passarinheira.

Pois bem.

Após uma longa e tortuosa espera, o grupo Ave Missões reuniu-se novamente para a tão aguardada passarinhada – e eu, efetivamente tive a minha primeira saída a campo com a turma. O destino seriam as cidades gaúchas de Derrubadas, local onde se encontra o Parque Estadual do Turvo¹, e Tenente Portela, cidade que abriga a Terra Indígena do Guarita, e terra dos nossos anfitriões, Dr. Furini, e dona Ju, casal extraordinário, amigos e notáveis hospedeiros. Ele, responsável por trazer ao mundo mais de 1/3 da população do Alto-Uruguai, e passarinheiro; ela, incrível curandeira moderna, a qual com sua dedicação zela pela saúde de uma população muitas vezes carente de cuidados.

Grupo Ave Missões na TI do Guarita. Foto: C. Boufleur.

Encontramo-nos todos na entrada do Parque do Turvo, por volta das 10 h da manhã do primeiro sábado de setembro. É preciso que se enalteça a organização e a limpeza das áreas comuns do parque, uma considerável estrutura guarnece os amantes da natureza que frequentam suas dependências. Fui advertido pela turma de que nem sempre foi assim, houve um tempo em que as condições eram mais “roots” por assim dizer, hoje somos agraciados por um grande espaço com banheiros, museu, lojinha de artesanatos, e estacionamento. Necessário enaltecer a simpatia e atenção de todos os funcionários e colaboradores responsáveis pela organização e manutenção, em especial aos guardiões florestais, os guarda-parques que tanto zelam para que a natureza siga seu curso bela e intocada.

Aqui imperioso se faz agradecer ao trabalho desenvolvido pelo fiel escudeiro da floresta, nosso querido amigo Carlos Neimar Kuhn, que além de guarda parque é o homem das 511 espécies registradas em um único ano, e que “Baita Ano”, já falei sobre o Baita Ano? Na sequência falarei um pouco sobre o nobre desafio desenvolvido pelo grupo e seus parceiros.

Como diz o ditado: “quem conta as ganhas tem que contar as perdidas”, e nesse sentido o Governo Estadual tem pecado em alguns pontos, principalmente pelas necessidades que os 17.500 hectares do parque nos impõe. Nos deparamos com viaturas em regular estado de conservação – isso para não ser indelicado, bem como a necessidade que se tem de um barco maior e mais potente, sem mencionar a urgente imposição de um concurso público que nomeie um número maior de guarda-parques.

Feitas as devidas observações, partimos rumo ao desconhecido, céu azul e sol brilhando – com nuvens escuras vindo das bandas dos castellanos – algo que me preocupava, afinal estava ansioso para conhecer o “Grande Roncador". Da entrada do parque ao Salto, a estrada de terra – por sinal bem conservada  possui 15 km, sendo toda ela sinalizada pela demarcação dos quilômetros. Assim, a primeira parada foi na lagoa da Anta (na verdade Lagoa das Marrecas) – assim apelidada devido ao avistamento feito pelo grupo há alguns anos de um indivíduo de Tapirus terrestres. Então, no Km 01 a brincadeira ficou séria, e pude perceber o comprometimento e a excitação que permeia o grupo.

Estacionamos as camionetes e descemos para a primeira observação, e assim como quem pergunta algo trivial e cotidiano, Márcia Rodrigues, a mãe da turma, amiga sempre solicita e disposta a ajudar, com ela não tem tempo ruim, alto astral constante. Dito isso, Márcia pergunta ao Carlos Neimar: E a jacutinga (Aburria jacutinga), tem aparecido por essas bandas?

Carlos, na santa paz de Deus, com a naturalidade de quem vê um joão-de-barro, diz assim: Está ali no fundo da lagoa, junto a um tronco... Dio Santo, o tendéu estava formado, câmera para tudo quanto foi lado, “laifer, laifer” diziam alguns, essa eu não tinha, meu primeiro registro - exclamavam. Mas afinal, do que se trata esse tal “laifer”? Lifer é uma expressão usada pelos observadores de aves quando do avistamento de uma espécie livre na natureza pela primeira vez. Muitos observadores de aves fazem uma lista de todas as aves que já observaram em sua vida, chamada em inglês de Life List.

Jacutinga (Aburria jacutinga). Foto: C. Furini.

Tá aí, gostei, e durante aquele final de semana prolongado fui o observador que mais fez Lifers, disso posso me gabar com orgulho, (risos).

Limpa-folha-ocráceo (Anabacerthia lichtensteini). Foto: M. Koch.

Bueno, confesso que certa aflição e ansiedade estavam me deixando apreensivo, pois como canta Adair de Freitas², “o tempo se armou de fato”, a essa altura o tempo já havia virado, e nuvens negras se avizinhavam ao parque, e eu como ainda não conhecia o salto, fui ficando angustiado. Nos despedimos do grupo, e partimos rumo ao Salto Grande.

A estrada que leva ao salto possui 15 km – acho que já falei ali em cima, mas foram os 15 km mais longos dos últimos tempos. Eu estava louco para conhecer essa maravilha da natureza, e vos digo, foi bem difícil encontrar adjetivos capazes de descrever a beleza e a emoção de ver tamanho encanto natural, simplesmente MAJESTOSO. A vontade era de ficar ali o dia inteiro observando. Na descida encontramos duas cutias (Dasyprocta azarae), roedor muito simpático.

Cutia (Dasyprocta azarae). Foto: A. Rauber.

Adelita e Francis contemplando do Salto Grande. Foto: A. Rauber.

Na volta do Salto encontramos o restante do grupo junto aos quiosques, onde fizemos um lanche e conversamos sobre os encontros. A primeira coisa que a Adelita perguntou foi se haviam visto mais alguma coisa, ao passo que a Márcia respondeu que não, Ade suspirou liberta – Ainda Bem – nem com vergonha ficou, super-sincera, mas aliviada. Após o lanche, e a continuidade do aguaceiro, rumamos a Portela onde passamos no mercado abastecer o sistema hidráulico, e seguimos para o sítio da família Furini, nossa base exploratória do território dos Kaingang – a reserva do Guarita³.

Todos acomodaram-se muito bem, afinal estávamos inaugurando as dependências do novo Recanto – fica tranquilo Furini, avaliamos tri-bem no Tripadvisor. Brincadeiras a parte, fomos maravilhosamente recepcionados pela Ju, com uma galinhada no fogão a lenha e panela de ferro. Não posso deixar de falar do café da manhã e de todas as guloseimas trazidas pela Ju e pela Márcia – um espetáculo. Após reabastecermos as energias, rolou muito papo e histórias entre a turma, sem falar no vinho e na puro malte, ótimos momentos de descontração.

Reconheço que dormi pensando no desjejum, aliás acho que todos dormimos, ao menos os que conseguiram, pois parece que havia um tratorzinho na volta da casa, (risos). Ataiz, bióloga são-borjense e especialista em flora nativa, até comentou que parecia que estavam serrando um tronco de madrugada. Foi mal pessoal. Então percebi que a Ataiz, assim como eu, não era passarinheira profissional como todos ali, mas percebi também que a Ataiz já havia estado no ninho com a turma em outras ocasiões, constatei então que o estranho no ninho era realmente eu.

Francis (o estranho no ninho) e Ataiz. Foto: A. Rauber

Bueno, café tomado, tração ligada, partimos rumo à terra indômita dos índios Kaingang. Mas antes, necessário referir a presença ilustre de dois novos integrantes à expedição, o homem dos 511 registros – Carlos Neimar, e o quase britânico-cruzaltense Charles Boufleur, o homem das técnicas e das teorias, o qual completara 500 espécies naquele final de semana, na verdade foram 502. Ah, ficou devendo o churrasco e a saída no banhado em Cruz Alta.

Logo na subida, Dante o ornitólogo chefe da manada, o detentor da benção descobridora, ou melhor, o possuidor do dom divino  e o seu olhar biônico, avistara ao longe um gavião-gato (Leptodon cayanensis), um pontinho ao léu, algo que somente os mais treinados tem a capacidade de ver, tanto é que somente o Ademir havia avistado. Já na entrada da trilha avistamos um casal de gavião-tesoura (Elanoides forficatus) em um movimento circular que parecia uma dança da sedução, um ritual da conquista. Lindo. Parecia ser o dia dos rapinantes, e realmente foi. Logo em seguida o falcão-caburé (Micrastur ruficollis), tauató-miúdo (Accipiter striatus) e caburé (Glaucidium brasilianum), deram o ar de suas graças, com toda altivez e desenvoltura. E assim fomos descendo o perau, chamando e observando tudo que nos era curioso e interessante.

Gavião-gato (Leptodon cayanensis). Foto: P. Buchabqui.

Caburé (Glaucidium brasilianum). Foto: D. Kunzler.

Falcão-caburé (Micrastur ruficollis). Foto: A. Rauber.

Ao final, chegando no riacho que corre abaixo do caminho, e onde possui um espaço descampado com uma plantação de aveia, fomos brindados – ainda que de longe - com duas espécies ilustres, o urubu-rei (Sarcoramphus papa), e também com o imponente gavião-pato (Spizaetus melanoleucus). O caminho de volta foi tortuoso, as passarinheiras na cabine e os barbados na cachorreira. Ainda avistamos uma caninana (Spilotes pullatus) serpentiando a trilha, quase 2 m.

Caninana (Spilotes pullatus). Foto A. Rauber.

Os “barbados na cachorreira”. Foto: P. Buchabqui.

De volta ao sítio, iniciamos os trabalhos do almoço, as meninas lidando nas saladas e acompanhamentos e nós trabalhando a parrilla. Carne nobre e selecionada, novilho precoce da cabana Furini, tudo no capricho. Pós almoço, fomos dar uma sestiadinha, pois tínhamos combinado uma corujada às 17:30 h. No auge do sono, desperto aos gritos do homem dos 511 registros, eu entendi algo com banana, mais ou menos por aí... fiquei meio perdido e ainda disse à Ade, quem é que vai querer banana depois dessa churrascada!? (risos).

Era o Araçari-banana (Pteroglossus bailloni) – para minha ignorância  uma espécie de tucano, com o bico verde meio serrilhado e uma cara de Angry Bird. Feliz era o Charles que ainda não tinha o registro. Bueno, todos a postos, rumamos novamente as plagas indígenas para a corujada.

Araçari-banana (Pteroglossus bailloni). Foto: C. Boufleur.

A observação na noite sempre é mais emocionante, pois além do fato de estarmos em total escuridão, todos os ruídos da floresta parecem amplificados. Uma coisa legal é o fato de precisarmos das lanternas, eu particularmente parecia uma criança maravilhada com a luz no meio do breu, até levei umas quarenta e sete chamadas de atenção da turma, mas acho que aprendi. Entre os seres notúrnicos observados estavam a coruja-listrada (Strix hylophila) e o bacurau-rabo-de-seda (Antrostomus sericocaudatus), este último indivíduo de nome um tanto sedutor, soube ser uma ave de rara aparição, e demasiadamente serelepe, não ficava parado para o retrato.

Coruja-listrada (Strix hylophila). Foto: C. Furini.

Bacurau-rabo-de-seda (Antrostomus sericocaudatus). Foto: D. Meller.

De volta ao sítio, era hora de renovar as forças com mais uma janta preparada pelas gurias, tudo novamente muito bom. Ainda deu tempo de mais um traguinho e bons causos, afinal histórias e estórias não faltam a esta turma. Entre elas a história da criação do “baita ano4”, concurso fotográfico realizado no período de 1 ano, no qual o vencedor é aquele capaz de realizar o registro do maior número de espécies numa temporada, uma iniciativa fantástica idealizada pelo grupo “Ave Missões” em conjunto com parceiros, algo inédito no Brasil. Um projeto grandioso e que muito nos orgulha.

A parte não tão boa é a de ter de arrumar as coisas, bate uma tristeza e uma nostalgia dos momentos vividos. Em nosso último dia, pois na manhã seguinte iríamos finalizar a nossa visita ao parque fazendo a trilha do Campestre,  onde tivemos a companhia do casal Ives e Elisa – caminho que leva até o porto Garcia, na beira do rio Uruguai, em uma outra parte do Turvo visitada somente com autorização especial para pesquisa. O dia havia amanhecido nublado e nebuloso, pois a noite passada tinha chovido um pouco.

Caminhamos por 4 km em meio a mata fechada com cheirinho de orvalho fresco, com direito a parada para visita a uma Canafístula centenária (Peltophorum dubium). Foi uma manhã com belos avistamentos e o encontro de uma digital felina esculpida na lama, a rainha da floresta, o maior felino das américas – a onça-pintada (Panthera onca).

Pegada de onça-pintada (Panthera onca). Foto: A. Rauber. 

Entre as espécies observadas, encontramos o papinho-amarelo (Piprites chloris) e o uirapuru-laranja (Pipra fasciicauda), dois belos passeriformes e não tão fáceis de se registrar, pois são muito astutos. Concluímos nosso deslocamento até a afloração rochosa chamada Campestre, um espaço aberto em meio a mata onde é possível observar algumas espécies de rapinantes, em especial o gavião-pato e o gavião-de-penacho (Spizaetus ornatus). Todavia, infelizmente não obtivemos sorte no encontro, mas valeu muito conhecer o local e principalmente o descanso e o lanche (risos). Para não dizer que não houve emoção, em determinado momento o Dante avistou um pontinho no céu, o qual parecia ser um gavião-de-penacho jovem, mas pensa numa lonjura, nem com a supermáquina do Furini conseguimos identificar a bola de pena voadora (risos).

Papinho-amarelo (Piprites chloris). Foto: A. Rauber

Após algum tempo de espera voltamos a entrada do parque, desta vez para nos despedirmos e darmos um até breve ao magnífico Turvo. Ainda houve tempo para um almoço em conjunto antes do retorno definitivo. Ademir e Débora, o casal germânico mais promissor da observação ornitológica da América do Sul, acabaram ficando no parque junto com o Dante (viciados em registros e conhecimento), os santo-angelenses (este que subscreve, Ade, Paulo, Marcia e Ataiz) retornamos, Furini voltou a Portela, Charles a Cruz Alta e Carlos Neimar às suas atividades habituais. Foram momentos certamente inesquecíveis, ao menos para mim.

Enfim, mas não ao final, pois espero que mais saídas (muito mais) como essas aconteçam, posso afirmar que esse pequeno exército de São Francisco de Assis são pessoas muito especiais, pois além de observadores, cumprem uma missão muito nobre, a de preservar e divulgar lugares e espécies. E é preciso que se diga, a capacidade de registrar tudo isso em imagens, realmente não é para qualquer indivíduo, pois além da capacidade técnica para tal, é preciso muita paciência, disciplina e disposição, e acima de qualquer outra coisa, ser um amante nato da mãe natureza. 

Grupo Ave Missões. Foto: C. Boufleur 

Ah, Furini e Ju, aguardem o nosso retorno, já estamos com saudades, e veja se me arruma um encontro com o bacurau-rabo-de-seda (risos).

Em tempo: Agradecimento especial ao estagiário Luciano, o qual está numa temporada de estudos no Parque do Turvo, e que nos acompanhou nas 2 saídas lá ocorridas. Foram registradas na check list eBird no dia 04/09 um total de 86 espécies, no dia 05/09 um total de 114 espécies, e no dia 06/09 um total de 74 espécies, fato que muito nos alegra, mostrando que ainda há vida silvestre no RS.
                                          

[1] Criado inicialmente como Reserva Florestal Estadual, no ano de 1947, passou a categoria de Parque Estadual no ano de 1954. Sua área concentra um dos maiores fragmentos da Floresta Estacional decidual do Estado. Fonte https://www.sema.rs.gov.br/parque-estadual-do-turvo

[2] Adair de Freitas. Previsão. Álbum Meu Canto. 1988.

[3] A Reserva Indígena Guarita fica no Noroeste do Rio Grande do Sul, ocupando parte dos municípios de Tenente Portela, Redentora e Erval Seco. Demarcada com cerca de 23 mil hectares, abriga o maior contingente de população Kaingang (cerca de 7 mil pessoas), de uma população total Kaingang de 30 mil pessoas. Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Guarita_(terra_indigena). Acesso em 13/09/2021.

[4] Para saber mais acesse: http://avemissoes.blogspot.com/2019/12/baita-ano-2020.html

2 comentários:

  1. Excelente descrição Francis. Feliz pro fazer parte dessa turma especial. Abraços a todos

    ResponderExcluir
  2. Gigante gratidão por termos participado de um pouquinho desta aventura maravilhosa, num lugar abençoado, com guias (Dante e Carlos) experientes e com uma turma tão especial. Grande e fraterno abraço.

    ResponderExcluir